Divulgar idéias próprias, combater o discurso invertido corrente, aprender a dividir, expor sentimentos,
trazer poesia ao dia-a-dia, eis a abrangente ação deste veículo de idéias. De tudo, um pouco - minha meta.
 

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18.2.05
 
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Menino Lucy Citti Ferreira


Só agora pude escrever alguma coisa pra meus amigos.

Sempre que me pego precisando de poesia, recorro à Cecília Meireles, uma das poetisas mais afinadas com o sentimento humano, com a vida.
Paulo Mendes Campos, ao selecionar os poemas que comporiam a antologia Flor de Poemas, afirmou: não há poeta moderno em língua portuguesa mais harmonioso do que Cecília Meireles; do princípio ao fim, com o mesmo fino fio de seda a incomparável artífice-e-artista teceu as suas peças inconsúteis. Com um par de palavras, Manuel Bandeira sentenciou: libérrima e exata. Assim é que uso constantemente os versos de Cecília cá, em meu canto, na intimidade de meus devaneios.
Mas Cecília tem uma valiosa obra em prosa. Da época em que escreveu para o Diário de Notícias (1930 / 1933), por exemplo, há preciosas crônicas sobre conceitos gerais de vida, educação, liberdade, beleza, cooperação e universalismo.
Destaquei esta pra hoje.

O CONCEITO DE VIDA

Não há muito publicamos neste jornal um capítulo do trabalho de Jean Piaget sobre a criança e sua representação do mundo.
Escolhemos a parte em que se procura saber o seu conceito sobre a vida. Nela vinham sugestivas respostas de muitas crianças consultadas, e todas essas respostas tinham o mesmo equilíbrio e demonstravam a existência de um mesmo nível do pensamento infantil, mesmo através os graus de desenvolvimento estabelecidos pelo ilustre psicólogo.
Queremos hoje apresentar, porém, as respostas absolutamente inesperadas que recebemos, de uma menina brasileira, de sete anos e três meses de idade, respostas que nos foram dadas com uma naturalidade assombrosa, e que por instantes nos fizeram o pensamento oscilar sobre aquela informação de Lafcadio Hearn a respeito da consulta que os japoneses tradicionalmente fazem às criancinhas do seu país, no dia em que completam dois anos, sobre a origem de sua vida, e o mundo de que vêm.
Nosso pensamento oscilou assim, porque a menina com quem falávamos pôs na sua linguagem uma seriedade que perturbava. Parecia que tinha dentro de si conhecimentos misteriosos e que achava fútil e cheia de ignorância a pergunta de quem a interrogava.
O diálogo, num ambiente de total isenção, levava o ritmo do método clínico recomendado por Piaget. Era preciso nada sugerir.
A pergunta foi decalcada nas suas:
Tu achas que o sol vive?
A pequena olhou-nos como de um outro mundo. E disse com uma convicção quase mística:
Vive.
Por quê?
As crianças do livro de Piaget respondem: porque se move, ou porque caminha, ou porque queima...
Esta não. Esta foi à causa primária, e disse-me:
Como é que posso saber por quê? Talvez ele é que saiba...
Ora, entre o primeiro porquê superficial que caracteriza a vida, e este segundo, que a explica, vai uma distância enorme.
Mas ainda insistimos:
E a água, também vive?
Aí surgiu uma explicação que achei notável. A menina, olhando para longe, como abrangendo todo o universo, disse-me esta coisa.
A água também vive. Tudo vive. Se não vivesse, não estava no mundo. Como é que podia estar no mundo, se não vivesse?
Eis aí um conceito de vida que eu não esperava encontrar numa criança de sete anos e três meses.
Não quero discutir o valor filosófico do conceito. Mas sua significação psicológica, comparada com a das crianças analisadas por Piaget, e mesmo com a visão de muitos adultos, sobre o mesmo tema, parece-me digna de atenção especial.
Tudo, pois, que está no mundo, segundo essa menina, vive. A prova de que vive é essa: estar, ser. Quanto ao porquê dessa vida, confessa a incapacidade de o definir.
Sente, apenas, que a razão é profunda. Que não a atinge.
E confia-a simplesmente à própria vida

(Rio de Janeiro, Diário de Notícias,24 de janeiro de 1931)

E porque falamos de poesia e porque falamos da poesia de Cecília Meireles, quem há-de? Resistir? Nunca!

NÓS E AS SOMBRAS

E em redor da mesa, nós, viventes,
comíamos e falávamos, naquela noite estrangeira,
e em nossas sombras pelas paredes
moviam-se, aconchegadas como nós,
e gesticulavam, sem voz.

Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,
à luz dos bicos de acetilene,
pelas paredes seculares, densas, frias,
e vagamente monumentais.
Mais do que as sombras éramos irreais.

Sabíamos que a noite era um jardim de neve e lobos.
E gostávamos de estar vivos, entre vinhos e brasas,
muito longe do mundo,
de todas as presenças vãs
envoltos em ternura e lãs.

Até hoje pergunto pelo singular destino
das sombras que se moveram juntas, pelas mesmas paredes...
Oh!, as sem saudades, sem pedidos, sem respostas...
Tão fluidas! Enlaçando-se e perdendo-se pelo ar...
Sem olhos para chorar...

De Mar absoluto / Flor de Poemas / Coleção Poiesis / Editora Nova Fronteira


publicado por Magaly Magalhães às 9:41 AM
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