Pássaro de Ademir Martins
ELAS...
Elas vêm de tal modo impregnadas de liberdade, elas surgem na vida com uma espontaneidade tão clara, com uma simplicidade tão límpida e definitiva em todos os seus gestos, em todas as suas atitudes, em todos os seus movimentos, que constituem um terrível escândalo neste cárcere em que nós outros já perdemos essas mesmas qualidades, que um dia foram também nossas, mas que adultos de então foram arrancando dolorosamente, gritando coisas que não entendíamos e que na verdade não têm existência digna de ser respeitada: interesses mesquinhos, conveniências, preconceitos, ilusões estreitas, com rótulos graves de moral e dever...
Elas não acreditam nessas palavras, não as compreendem, não as aceitam. Porque elas não precisam de obedecer a dogmas, para serem puras, pois já são a própria pureza; não precisam de palavras que escondam os defeitos, porque aparecem perfeitas; não precisam de nenhum artifício porque são apenas verdade.
Mas, como o peso do ambiente é mais forte que toda a tenacidade de sua heróica resistência infantil, assim mesmo sem acreditarem, sem compreenderem e sem aceitarem, elas são forçadas a sucumbir sob a imposição violenta, obstinada, constante, das razões do adulto, exercendo sobre elas, com toda a largueza dos seus instintos de domínio, uma tirania que, desgraçadamente se supõe apoiada na rigidez das virtudes e nos ditames das experiências que podem ter sido de uma geração, mas...certamente não vão ser mais das seguintes, -- porque a eternidade da vida tem esta coisa singular: não repete os seus aspectos...
Elas poderiam criar um mundo mais verdadeiro, mais puro, mais de acordo com o sentido primordial da natureza. Elas são a vida em princípio e, apesar de todas as heranças que já carreguem em si, chegam diante de nós como se não tivessem passado, como se fossem apenas esperança, como se tudo, depois delas nascesse também outra vez, livre, infinito, admirável.
Mas suas perguntas mais profundas têm respostas horríveis. Ou insignificantes ou mentirosas.
Suas manifestações mais espontâneas são recebidas com uma hostilidade inesperada e amarga.
Seus primeiros pensamentos são encaminhados por um rumo que é o dos lugares-comuns, velhos e tediosos como ruas escuras.
Seus primeiros sentimentos são limitados segundo medidas cautelosas de avareza.
Elas, que vêm repletas de possibilidades intermináveis, transbordando ritmos, riqueza, vibração, alegria, têm de viver dentro de um círculo, contra a mesquinha curva, do qual o mais leve atentado é um tremendo crime.
A vida delas é assim.
É assim a vida das crianças. Foi assim a nossa, e a dos nossos antepassados. E a dos nossos sucessores também há de ser igual, se não tivermos hoje, todos nós, que somos responsáveis por elas, este heroísmo de as defender contra os nossos próprios interesses, contra o nosso sossego, contra as nossas conveniências, contra a falsidade da nossa existência que esmaga impunemente a sua incomparável e admirável vida.
(Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 13 de junho de 1931)
Crônica de Cecília Meireles, do livro Crônicas de Educação I
Como vemos, Cecília, professora que era, esforçou-se na defesa de novos caminhos para a escola brasileira. Colocou nessa luta todo seu empenho de suas firmes convicções humanísticas. Sua contribuição neste sentido foi inestimável, valiosíssima.
O tema continua válido, pulsante, urgente. Podemos tomá-lo como bandeira e continuar a pregar e trabalhar em prol da Educação no Brasil.
Texto longo, vamos evitar um post longo demais. É preferível que haja tempo para digerir o pensamento da educadora.
Encerraremos rapidamente com um daqueles provérbios que foram explicados quanto ao significativo e ao histórico e está citado no livro Mas será o Benedito?, de Mário Prata:
Tá com a macaca
Significativo:
Está furioso.
Histórico:
A índia Bartira, filha de Tibiriçá, casou-se com Brás Cubas, fundador da cidade de Santos. Foi morar na casa dele e levou sua inseparável macaca. Quando brigavam, contam os historiadores, ela ia dormir com a macaca. Se alguém perguntava por ela para Braz Cubas, ele respondia: *Está com a macaca*
(Do livro Da fundação de Santos aos nossos dias, da pesquisadora da USP Carolina Aflalo)
Tem mais, tem mais, depois eu conto.
UPDATE (em 01/09/o5)
Uma notícia alvissareira:
A escritora Nélida Piñon acaba de ganhar o prêmio Jabuti com o livro Vozes do Deserto lançado em 2004. Ano brilhante, este de 2005, para a escritora que, em julho passado, teve a glória de receber o prêmio de Asturias. ( Foto acima)
Nossos entusiásticos parabéns, grande dama das letras.